terça-feira, maio 06, 2025


Já não há lugares proibidos, vamos
e connosco vem uma espécie de terror 
de frieza alucinante, essa
das grandes distâncias, das eras
que nos defendem e separam.
Há palavras capazes de pôr ordem
às tempestades, e outras que arrancam 
qualquer reflexo ou eco deste mundo
deixando um rosto vazio de si mesmo.
Nas paredes de alguns refúgios destruídos 
ainda se lê a magia dessas frases.
Deixamos este pingar demente de épocas 
entregues à ressaca e vamos
cosendo as noites entre si, 
colhemos à superfície de uma vida veloz
detalhes frescos rudes absurdos,
deixamos e sofremos as marcas,
toda a ausência que se pode suportar,
também pelo prazer de nos sentirmos 
longínquos, avistados uns pelos outros
mas tão incertamente
e a meio de raras metamorfoses.
A noite pode ter sido tudo
o que exigimos da vida,
e como era doce então sair da cama
olhar algum vestido desfeito por mãos
apressadas, sentir o mijo bater
na água e desfazer todos os contos de fada.
Apreciar o vulgar afecto que trocamos
como alegres anjos retardados,
seguindo na pele uns dos outros o brilho 
dessas luas a atravessar os lagos desertos.
Algum de nós pôde deitar-se com Joyce 
Mansour, mordeu-lhe o lábio inferior
com vontade de o desmanchar para sempre,
outro aproveitou-se o mais que pôde
de Colette, mas elas e outras 
também nunca nos deixaram sair vivos
desses quartos. E neles descobrimos
juntos como os corpos são apenas
tão belos quanto a dor que os espera.
Depois as histórias prolongam-se
livrando-se de qualquer sentido,
dando cabo de todas as ilusões.
Os que ouvem, já sabem e riem…
Como os beijos morrem tão depressa, 
e as bocas duram menos que um segredo.
Mais tarde algum covarde dirá o pior
dos que se amaram.
E terá toda a razão. Mas só contará 
as migalhas, só verá o que tem
ao seu alcance. Falámos tão baixo,
tínhamos essa pouca voz de quem
se despede, de quem arranca à carne
cada um dos frutos, a dor, a própria fome.
Afinal, o paraíso fica tão perto do inferno, 
mas isto só o sabem os poucos
capazes de ir e voltar.


domingo, abril 27, 2025


O caminho vai ficando estreito, 
amanhecerá mais um punhado de vezes
e outras por favor, mas só resta uma substância 
insegura, sem a menor intenção, e depois
o ocasional amanhecer marinho, largo, 
e alguém talvez se esforce por traduzir 
as memórias do vento, salvar um parafuso
do carrossel desfeito, a impressão de um 
soluço mecânico. Assobiamos os caminhos 
estas estradas, mesmo as borras tipográficas,
admiramos uns tantos que preferem viver sem 
pontuação, espiando o acaso,
a melodiosa intriga de uma paisagem
suspensa, esses lugares onde a realidade 
parece inacabada. Um dia perderemos 
a relação com o tempo, às vezes eu
já gosto de lamber a faca ao fim de dias,
tantos usos, o gosto misturado e
esse jogo de lançar a imaginação
pelo penhasco, entre a névoa, ler só 
estórias de fantasmas, pressentir como
só os desastres ainda têm ouvido
para o que busca o outro lado da vida.
Saímos a meio da noite, e temos horas
com gravações de insectos, frases
recortadas, sobrepostas,
o relevo nocturno, o burilar e o eco
das chuvas depois de terem cedido
as traves do céu. Gosto de ver esbater-se
na água a minha carne de lua e de orvalho.
Passamos horas diante de uma chávena,
como aranhas, a estender alguma teia
a inventar presas. Entretanto,
o nosso nome já nem parece funcionar
ou responder seja a quem for. Na rádio,
do que pude perceber vem aí outra,
estão a matar aves todas as semanas,
às centenas de milhares. Se não for isso,
será outra coisa. Estamos habituados.
O fim fez de todos nós detectives 
implacáveis cronistas, habitantes da orla.


quarta-feira, abril 23, 2025


Para voltarmos vivos virgens a certos
lugares faz-nos falta outro rosto, um
desses familiares, suaves, que não insistem 
no quanto hoje somos ilegais, desolados,
rudes uns para os outros, 
mas nunca chega a haver desordem
mal nos olhamos, só por delírio 
nos parece que alguém cruza as linhas,
algum morto elogia uma jovem,
faz de um vestido amarelo um acontecimento,
e que inveja lhes temos, aos mortos.
Eles, que perderam toda a vergonha,
têm esse talento de quem raspou
até ao fundo a cova que lhes foi destinada,
regressando aos prazeres que nós 
por fraqueza desdenhamos. 
Só para os vermes os mortos
são todos iguais, diz Müller, e é evidente 
como a respiração de alguns provoca
nas nossas vidas um estranho efeito…
Deste, o sangue deixa-nos na boca
um gosto impossível, faz-nos acreditar
na aventura de um sincero luto,
aquele acusa-nos de tudo, pela ausência 
de vícios gozos perversões, transpiramos
e não se pode resistir à proximidade
a forma como rebenta e nos desfaz
em espuma cada pulsação deles,
esses corações que pararam de bater
deixaram de justificar-se, são mais audíveis 
cavalgando todos os ecos, têm 
uma avidez, aqueles gestos seguidos,
flagrantes, aquela alegria de estar diante
das belas coisas novas, aquela pressa
e como têm nomes sempre, os mais vivos
para aquilo que mais se esquiva, ah
essa gravidade que só conhecemos
de alguns seres quando já só lhes resta
uma frase, entre a poeira secular dos livros
um perfume indecente, o embalo e a sombra 
que liga as passagens mais desconexas,
eis a religião dos canibais, a que força 
e desenreda a memória, a música dessas
coincidências decisivas. Derrubam-nos
seduzem magoam, falam tão baixo e
não se perde nada, levam-nos a lugares
onde pode ainda exclamar-se
com terrível sinceridade: como a vida
é lenta, e a esperança violenta,
como são ainda perseguidos os encantos 
absurdos, ainda que por poucos,
os que nos engolem na sua névoa instintiva,
nos grandes bosques, sem horários,
nesses precipícios antigos, sem placas,
só vertigem. Lugares como esse jardim marinho
onde também eu deixei os meus remos.
Alguém sorri, prefere jogar às cartas,
inventar posses, apostar tudo e exibir
enfim o pescoço, mas com uma tal disposição 
de morrer, que mostra o sem sentido da coisa.
Homens esquecidos por certas mulheres
têm iluminações destas.


terça-feira, abril 22, 2025


É precisa alguma coragem
para fechar os olhos neste mundo,
e nós sempre apostámos contra nós
a favor da imaginação que nos corrói 
afiando algum trovão um fio entre coisas
de nada, reescrito mil vezes atravessando
quantos cadernos, num brilho
em que se cruzam os suaves solitários,
culpados, mal dormimos e tantos são já 
os sonhos a aguardar a sua vez.
Ficamos a ler quietos à luz dos fogos
de um mundo a desmoronar-se
com uma destas canções ordinárias
mas doces a tocar em fundo.
Não tens quase nada no quarto,
umas flores secas, as frequências de uns
poucos, o morse que resgatamos entre
as paredes finas deste século, neste profundo
asilo ouve-se a água, o cerco, as ervas
que crescem por aí, os livros na cómoda,
a ilha que recuperaste sozinho,
as frágeis espécies inventadas metidas
debaixo de astros que ninguém incomoda.
Depois de uns anos de estranheza,
torna-se um gosto sentir a ferrugem 
nos ossos, tremer de ideias que se colhe
como frutos negros que a cada hora
nos refazem a boca, o olhar, a perspectiva,
e ficamos nessa conversa fiada,
gozando a imoralidade própria 
dos que se sabem sórdidos mortais.


quinta-feira, março 27, 2025

Luís Oliveira (1940-2025). Uma revolução com sotaque estrangeiro



Tinha um irritante sorriso de bazófia e aquela distinta sobranceria de um patrão, falava do seu percurso e de si próprio regurgitando há décadas a mesma ladainha, empregando um tom de lenda, e essa narração acabou replicada, em parte pelo menos, nos necrológios, o que sinaliza como ele soube ler a tendência para reduzir tudo a uma caderneta de cromos, tendo desde muito cedo tratado de fomentar o panegírico em redor da editora e do seu papel, esse canto tão fantástico porque fúnebre, enquanto a casa se governava e o negócio se robustecia, e ele encarnava aquele género de heróis por conta de outrem que sempre povoaram o campo da edição. Assim, se lhe deve ser reconhecido o inegável mérito de ter criado um catálogo impecável, que defendia um tribunal às avessas, e a subsistência de um modo implacável da crítica integrando os contributos de anarquistas, comunistas libertários, situacionistas, erguendo uma galeria de autores em que o todo era manifestamente mais poderoso do que a mera soma das partes, por outro lado também se lhe pode apontar uma espécie de desencorajamento dos autores empenhados em fazer esta mesma crítica anticapitalista entre nós, sendo que nos últimos anos a própria revolução por cá parecia ter sotaque estrangeiro, como uma ideia que só poderia vingar se fosse importada. Podemos reconhecer a Luís Oliveira o ter criado as condições para que um conjunto de colaboradores e leitores – por vezes sonegados ou secundarizados por ele, sempre que achava necessário açambarcar os créditos e ressalvar que a Antígona era ele mesmo – pudessem compor lentamente e de forma muitíssimo coerente uma biblioteca com cerca de quatro centenas de títulos que se tornou um formidável desafio à civilização da alienação, por outro lado, ele mesmo desdenhou em tantas das suas intervenções os elementos mais radicais e emancipadores daquelas propostas, e enquanto as escolhas se mostravam bastante rendosas, não hesitava em recorrer aos tais “silogismos bolorentos” sempre que precisava de justificar a sua visão bastante conservadora e pragmática da empresa onde ele cumpria alegremente o papel do patrão. Mesmo se tantas vezes exibia uma confiança meio delirante, reclamando para si a aura e a distinção dos editores que dissipavam fortunas para dar expressão às vozes e às artes abomináveis, confundia duas esferas, duas formas de orgulho antagónicas, a do homem que triunfou enquanto a proliferação dos livros reduzia a sua esfera de irradiação, e a do tal editor que “escolheu os caminhos selvagens e abandonados pelos senhores do saber social dominante e que conseguiu aguentar-se no tempo” (Jorge Valadas). Acontece que esse triunfo significou em grande medida uma adaptação aos apetites do mercado, nomeadamente uma ânsia por oferecer o tipo de mercadoria que consubstancia uma forma ritual e gestual que passa por envergar o protesto e os sinais de repúdio pelo capitalismo, sempre enquanto símbolo, sem pôr seja o que for em causa, nem corroer as estruturas de coacção. Na verdade, este cinismo apenas as reforça, dando a possibilidade a alguns de se ludibriarem, continuando a consumir de forma impune, e escolhendo estrategicamente quando lhes convém assumir uma distância irónica. De resto, como demonstraram alguns autores, esta estrutura de repúdio serve de álibi ao próprio capitalismo, e não deixa de ser curioso que a Antígona seja um dos raros exemplos entre as nossas editoras que beneficiaram com a fusão realizada pelos grandes grupos editoriais, pois enquanto concentravam pequenas e médias editoras, convertendo-as em chancelas, e absorvendo os catálogos, para logo promoverem uma gestão centralizada, a editora de Luís Oliveira soube valer-se do definhamento da diversidade das apostas editoriais para reclamar a sua imunidade face àquele processo de extinção. Isto permitiu-lhe surgir isolada, com o seu editor a imaginar-se o nosso Crusoé, formulando essa consciência de um náufrago que resiste na sua ilha, entregando-se a acessos de megalomania em que reclamava para si o mérito das obras que lhe chegavam de fora e que ele traduzia e divulgava num contínuo sermão aos peixes, imaginando que sem os ter descoberto e publicado, os autores nem existiriam. No caso de Luís Oliveira, a distorção ainda é mais grotesca, uma vez que do inegável prestígio que alcançou o seu catálogo, um dos aspectos mais assinaláveis é a quase total ausência de verdadeiras descobertas, não editando propriamente os textos, mas limitando-se a fazer uma curadoria a partir das apostas feitas lá fora. Mesmo assim, gostava de se imaginar à frente de um quartel-mestre e adega de ratos, serpes e escaravelhos, uma forma de inversão folclórica com vista a exaltar aquele pequeno coral de espíritos indómitos ocupados a compendiar tantos dos mais ferozes discursos de crítica ao quadro de impostura e opressão a que nos vemos submetidos.
Enquanto o sector se ressentia com aquele efeito de esmagamento e abolição do ecossistema editorial, a Antígona reforçava a prosápia, e impunha a sua encenação moral, num zumbido que às tantas operava mais como “um ruído de fundo carnavalesco”. Com insuperável jactância, os materiais promocionais desta reclamavam títulos entretanto exaustos como o da mais insolente editora, refractária, sediciosa, subversiva, transgressora, uma força de resistência, uma conspiração permanente contra o mundo… E isto a um ponto tal em que o projecto de crítica parecia cair para segundo plano, enquanto ganhava relevo um programa de auto-celebração, que se estendia aos próprios leitores, os quais, enquanto se forneciam de textos incendiários que deveriam reduzir a cinzas o quadro miserando da mercantilização e o enredo espectacular, ali participavam num cerimonial em que a aquisição dos livros passava por ir buscar a hóstia maldita, numa liturgia que invertia os signos apenas para reproduzir uma outra ficção beatífica. E aquele discurso absurdamente enfatuado e que se fazia passar por insolência, não significava outra coisa senão uma reconvenção do fetichismo da mercadoria. Leia-se a título de exemplo uma dessas proclamações destacadas em letras garrafais nos panfletos da editora: “A Antígona não aspira conquistar um lugar, modesto que fosse, no mundo das artes e das letras, nem na história assaz respeitável da edição. Se por infelicidade um panteão lhe fosse oferecessem, o único que lhe conviria seria o dos grandes cataclismos, ao lado dos terramotos ou do dia da peste. Da peste; sem dúvida!” Assim, se todos beneficiamos do trabalho de quase meio século de uma editora que se construiu como uma promessa de desobediência, e em que cada livro devia renovar um apelo ameaçador, se não podemos deixar de elogiar as suas edições esmeradas, com óptimas traduções, um excelente trabalho de revisão, e, nos últimos anos, impondo-se ainda pelo cuidado gráfico e com a paginação dos livros, produzindo objectos muitíssimo estimáveis, a própria editora deveria ter dado o exemplo, abrindo a possibilidade a um reflexo crítico do seu trabalho, a que lhe fossem apontados os excessos numa forma de comunicar que passa por gabarolice, no que, de resto, segue a postura do seu editor, que fazia gala dos seus opíparos consumos, alguém que pela sua intervenção emancipadora requeria os luxos de uma aristocracia subversora, mas se nuns momentos se dizia comprometido com “a subversão das condições mentais presentes”, e empenhado em contribuir com as suas edições para a crítica da sociedade mercantil, não hesitou em recorrer aos tribunais quando outro editor se antecipou à suspensão dos direitos de autor sobre a obra de George Orwell, isto depois de confessadamente ele mesmo ter conseguido alguns dos maiores êxitos de vendas da Antígona com sucessivas edições pirata, e que, nos últimos anos, levou ao paroxismo a sua postura de vigarista e troca-tintas indo ao ponto de desautorizar os autores que publicava, abusando de máximas dissolventes e dando a entender que não havia de facto alternativa ao tal regime mercantilista. Assim, mesmo se fazia a fita daquele que veio fazer entre nós qualquer coisa que absolutamente tinha de ser feita, dita, pensada, para que a conspiração se mantivesse enquanto uma operação permanente, uma resistência às ideias feitas, à acomodação, aos conversadorismos, às tantas, a própria persistência, e aquela história de meio século, oferecia-nos uma leitura dolorosa sobre o fiasco daquelas propostas, de como em cima delas foi possível construir um esquema bastante lucrativo, mas não se gerou qualquer contágio ou motim. De resto, se nunca se eximiu de expressar uma visão deprimente do nosso próprio contexto cultural, se não perdia a oportunidade de rebaixar os escritores portugueses, repetindo que era mais difícil um autor entrar no catálogo da Antígona do que um camelo passar pelo buraco de uma agulha, quando o confrontávamos com essa tão severa apreciação e lhe perguntávamos se já tinha lido este ou aquele título, autor, a resposta era que não, invariavelmente lá reconhecia que não fazia puto de ideia. Portanto, o seu magistério passava por uma obnóxia indiferença e desdém, e se nunca se mostrou muito empenhado em instigar e dar força a um ímpeto de crítica selvagem entre nós, depois mostrou-se muito competente na hora de se servir do estrangeiro como uma assombração desoladora, uma barreira supressora.


segunda-feira, março 17, 2025


Temos de rezar, sim, não a deuses
mas uns aos outros, até que nos consuma
a chama crua que coze cá dentro
e logo que temperaturas febres se alcança 
só pela troca de algo tão breve
como um olhar,
Desembarcamos, vimos,
rindo brilhando
com movimentos bruscos, luzes
desavindas, cheiros, numes, 
desse radiante cansaço que se parece
com a embriaguez 
o corpo é uma memória comum, mapa
onde abrimos a noite, as senhas
os idiomas corroídos
de tanto nos falarmos a sós 
com o escuro desatado, essa canção
que nos deixou água nos ouvidos,
e ainda o embalo duro que toma conta
dos corredores, a impressão 
dos que tremem diante do impossível 
Viemos pela vida, mas não da que se vê
por aí, tão vista, já gasta
antes a outra, forte e de antiga data, 
mesmo se estreita cheia
de vincos, remendos E que incerto
se mostra esse rosto
um rosto tão escuro que não há luz
para abri-lo de uma vez
mesmo para nós, é um susto
a cada expressão, e ao rir-se
mal lhe sobrevivemos
faz meses que cobrimos os espelhos
e ainda falta tudo o que nos vão obrigar 
a fazer. Eu, eu, onde me levou isso
tão riscados os papéis, e que promessas
nos fizemos 
: um dia destes torno-me discreto
seis meses seis anos mais uns seis
segundos da minha carne à tua
acabo eu mesmo com a minha raça
nem deixo que se oiça outro passo
neste continente absurdo
mas não antes que uma coisa
fique clara, um nó por cima de outro
como a vida exige ser cobrada à morte


sexta-feira, fevereiro 14, 2025


As paisagens estão frias, 
alguém impôs um limite à música,
respiração que nos iluminou noutros dias.
Houve ordens nesse sentido,
e é para o teu próprio bem.
Há seres que se vêem empurrados
para o passado, trancados na memória 
repetindo os mesmos lugares
onde encontraram aquele resumo
falso do que a vida poderia ser.
Quando a presença dos desconhecidos 
deixa de surtir em nós qualquer efeito,
o mundo já não nos prende.
Bastam então os elementos para
nos sentirmos a apodrecer, calma,
docemente. Os nomes
começam a despegar tal
como o papel de parede.
Não ousarias dizer mais nada 
de modo a não perder o fio.
Tínhamos de sair daqui,
mesmo não havendo outra coisa
é melhor estar de passagem,
não recear pôr termo às coisas.
Que última hora terá o sol
neste lugar para nos vir dizer
que o corpo é uma oração
e que ninguém poderá saber
desta ferrugem que nos consome
a carne, da areia que encontramos 
nos bolsos, do deserto que levamos
cá dentro.


segunda-feira, dezembro 30, 2024


A partir daqui não conta; é o cansaço 
acumulado e alguns reflexos que lhe fogem
e se põem a abusar da imaginação.
Já deves ter ouvido essas histórias,
coisas atrozes, delicadezas absurdas,
os ratos que somos em cima da carcaça 
dos antigos deuses, e disso
fica este rumor como vizinhança.
Que importa? Lemos versos como nas trincheiras 
se masca tabaco, para ocupar a boca,
roendo o vazio, quando ninguém sabe
que fazer com toda esta ausência.
O outro é que repetia: “Ninguém ampara
o cavaleiro do mundo delirante”...
Pois ocupamos as escadas, entre andares
sem subir nem descer, há meses
colhendo folhas, insectos, a fazer chá 
se chover, sem despirmos a velha
gabardine. Estamos tão juntos
e não é que sejamos iguais, talvez
nos falte a paciência e o orgulho
que faz inimigos.
Foram bons tempos esses,
prefiro recordar-nos como éramos então,
quando acreditávamos na guerra, 
na importância de tomar de assalto
uma colina, uma ponte... Agora
aqueles mesmos soldados reúnem-se
e já não sabem o que viram, que mundo
era aquele, e de roda de um piano
compõem uma música que nem é
para se ouvir, só para estar ali.
A estas horas detestáveis do dia
é tão difícil estar vivo,
os fantasmas mantêm-se bêbedos,
apesar de a noite não passar já
de uma miragem, uma lenda.
Os detectives dormem pouco,
maltratados pelos astros
reviram-se e dão por pistas ou migalhas na cama,
atravessam a cena de algum crime,
fazem-nos mil vezes as mesmas perguntas.
A culpa é nossa, diz alguém, foi isto
o que escolhemos, como grita o velho:
“se não amam o caos, não comem…
Só quem respira o alento da fera
tem o direito de descrevê-la,
erguendo o pó, misturando pétalas e escamas”.
Eu já gostei da vida. Mas agora,
a cada dia, pergunto-me: o que é isto?


quinta-feira, dezembro 19, 2024


O que é que o som de pássaros tem a ver
com estes lugares de culto, e o hábito 
de substituir a perversidade natural
pela ambição de vulgares imitadores
estes que usam tinta e fixam disparates,
pintores, filósofos, fotógrafos, estudantes
de moda, os imbecis do costume, todos
os que perderam o sexo e a fome, e costuram
vezes sem conta as suas fantasias fingindo 
uma intensidade criminosa sem levarem
nada até ao fim? Só que depois é o monstro
quem ouve primeiro esses sons, a luta
pela vida das coisas que não podem estar
no mundo. Já tirámos tudo o que foi possível 
de sacos de papel, o horror das migalhas
e a disputa entre sombras, mas se queremos 
que vejam algo mais, não seria necessário
torturar cada um deles? Repara como
mastigam cada nome e lhe esquecem o rosto,
os detalhes assombrosos, os traços frios,
as hastes, o nariz quebrado, o modo de
pedir com os olhos. Passam-lhe batom
e o sorriso ainda fica um caos, porque é
ainda pior do que se diz, este jogo de azar,
a arma que vai passando de mão em mão,
e mais tarde, ah, mais tarde esperam eles,
cheirando o rastro que deixaste, fazendo
aquelas caras, tirando notas, julgando
que se acabou, e que estão safos, só que
depois ainda é a vez dos nossos ecos.


quarta-feira, dezembro 18, 2024


rompe e rasga, põe aí o recorte
e o acidente natural, tudo foge,
se esquiva a si mesmo, tudo quer
lançar-se sobre outra coisa,
a fantasia das coisas é o diverso,
a sombra misturada, a vertigem
sexual, cada quarto íntimo é 
uma tremenda confusão, ficam
impregnados os sinais de uma
metamorfose incompleta, dolorosa
mesmo a consciência é apenas
a passagem, e cada um nasce já 
com a sua lâmina, o tempo fere-se
entre nós, e é depois de um corpo,
da necessidade absoluta, quando
desse gosto de que antes não 
sabias como te saciar, é então 
que deixas esse gesto a meio e
sentes o eterno cansaço de certos
meses, puxas os lençóis sobre
a cabeça, porque no fim nada nos
satisfaz, a poesia é a interrupção


terça-feira, dezembro 17, 2024


Sem fortuna de espécie alguma, com o nome
por fazer enquanto outro feito já contra ti
surge amiúde na boca dos demais
como pérola negra desse baixo tom de intriga
e da amargura de tanto morderem no vazio
mas se, da sua ameaça, resta um gosto acre,
quanto à força tomam-na por devaneio
pois tudo o que vive lhes causa tonturas
tudo o que importune a ânsia de juros
que os leva a rebaixar a beleza, irrita-os,
como cada pedra refazendo o seu voo
ao reanimar os estilhaços e a corrente
entre as ilhas obsedantes, a favor
da irrupção do quotidiano no mundo divino,
seus lugares e vozes, tudo isso os assusta.
Num convívio do real com o irreal,
a cada manhã o poeta desperta diante
da sua insuportável metamorfose,
tão doce para nós, vem e ofende o mundo
devasta-lhe o pudor, as convenções, mas
e estes comedores de lótus, que fazem?
Apenas se repetem, só criam espuma
em vez de ondas, e em vez de igualarem
aquele transtorno exaltante, vulgarizam-na 
para que se pareça um pouco com eles.
Nunca este ou aquele homem puderam
apropriar-se dela, dessa luta para tirar
a forma do caos, imprimindo de novo
o seu escândalo. Mas que fazem os imbecis?
Falam tanto dela, querendo apenas dizer
uma e outra vez: eles mesmos, a posse,
esse vazio dos que respondem sempre
à chamada, sem nada de perturbador que dizer.


segunda-feira, dezembro 16, 2024


Das cem vezes que fomos ao fim do mundo,
pelas contas que tu fazes, eu já preferia
apenas quedar-me sentado a ouvir
esperando pelo dia em que só nos reste
recuar, dar claridade ao que ficou
pelo caminho e rever tudo ao longe
a despegar da casca, emendá-lo, pôr lá
novas cousas e assustar os que morrem
com o dedo encardido nalgum mapa
temos o mar ali à direita, dando-nos corda
e alguma pena, soando como o riso
dos afogados, mas dizes tu que ainda
cercamos terras inverosímeis
aquela desmesura lenta do que
nos assombrava, o que persiste hoje
sem perfume e só nos cansa, assim
de bruços sobre mesas de pouca luz 
parece que desenhamos um do outro
o contorno no pó que se acumula.
Neste país de gente acenando 
para alguém que foge, tão cedo isto
a que chamam vida nos desmoraliza.
Lavamo-nos só de raro em raro,
como velhos reis sem apetite nenhum,
enredado o suspiro nesse murmúrio
em que nos cozem, se retemos memórias
é só do que se viveu por fora, eu aprendi
noutros mundos vi sobre outros muros
espiei tirando notas volumes e formas
por isso antes que a imaginação se esgote
e só a oiçamos tossir encher-se de bolor
volto regresso lá como me lembra
entre os detritos e por onde ainda dói 
com o sangue tomado de um ritmo
capaz de corroer os ossos como ferrugem
e faltando isso um dia destes até prefiro
morrer destelhado como o Assis a
lamber o reflexo na montra duma livraria
quase distraído quase desinteressado


domingo, dezembro 15, 2024


Vamos medindo a morte a cada verão
e mesmo se a luz já não nos diz respeito
tentamos recuperar uma província:
esta, antes que escureça de vez, 
antes que o mundo perca aqueles traços,
esse rosto de que gostaste tanto…
Os pássaros pousam na flecha do catavento 
que aponta a Sul, um céu baixo ferido
roça-se nos telhados, nas vigas
que sustentam a tarde, um sino arrulha
para não espantar o silêncio que ainda dorme,
cada um se defende com o olhar,
segurando a vida e a sua distância,
polindo a herança de uns quantos trejeitos 
como esses primitivos que carregam 
por toda a parte o maxilar inferior
dos seus mortos. Estamos gratos
sobretudo por esta tristeza,
a atenção aos frutos que não foram
colhidos e já só sabem a verme,
o regresso a Drummond e à epopeia 
dos pobres diabos, essa distracção 
que nos leva a olhar pelos outros
a apaixonar-se sem a menor vontade
de interrompê-la, de alimentar as ilusões
do costume. Colhemos uns detalhes,
inventamos outros, e podemos admitir
que gosta de trabalhar em hotéis
sobretudo nestes que já vão caindo
aos bocados, e que deve agradar-lhe
aquela arrastada presença anónima,
os gestos sem grande significado,
a sensação de viver pelos fundos.
A beleza podia complicar as coisas,
mas já não tem de se preocupar com isso,
muda a roupa de outra cama, 
apanha um brinco, um corta-unhas,
escuta uma música abafada,
sempre que ouve as conversas
sente um cansaço enorme da vida.
Deve ser bom tomar café com ela,
deixar que os séculos apodreçam
sem tentar salvar qualquer essência.
Nem abrir a boca, não dizer mais nada.
Pois é certo que, no fim, são as coisas
que dissemos que um dia regressam
para dar cabo de nós.


terça-feira, setembro 17, 2024


Entre o barulho acha-se hoje uma epopeia
nos ruídos que se perseguem, entre as frases
abertas como navalhas, ou neste copo 
que me deixa nos lábios o gosto
de um sonho que não era para mim
e dele guardo o rasto de um corpo estranho
um apetite por aquela que nem morta,
vive-se abalado pelo impossível,
deitando as mãos remexendo nos ciclos
e um dia aprendemos que o futuro
é tão antigo como o passado,
mas se ao menos eu soubesse sempre
o que sei agora, se me fosse oferecida
a oportunidade de um crime voraz
não diria outra palavra,
morre-se demasiado na imaginação
cada vez menos a meio no vinco da vida
nos extremos do mal ansiando o novo perfume 
e então que pressa de sacudir o cadáver 
ameaçar cada uma das pulgas
levar a sarna a outros fins
fazer nascer na própria carne o verme
que ri e aumenta a fome e o escuro
tudo aquilo que te rói para lá da vida
o gozo de ir ao lago pé ante pé 
e estrangular o cisne, o próprio canto 
lançar esses reflexos procurando outra forma
na superfície da água 
falamos e as palavras fazem-nos ver
e ter claro como tudo isto será esquecido 
roubar é por isso o verdadeiro gesto
entre todos o mais doce e misericordioso 
guardando horas perdidas, dando-lhes
continuação, outras vistas
flores voltadas para sóis destruídos
e como estas nos apresentam a luz,
o calor de tudo o que se acabou,
as crianças que chegaram à fala
imitando os pássaros,
apanhando os próprios ecos
para os levar a outro fundo
desenvolvendo cores amargas, a razão 
de tudo quanto treme, como eu ou ele
diante da nudez dela
dos gestos repetidos pelo espelho,
os dois juntos encantados vimos
como acalmavam o tempo


segunda-feira, setembro 16, 2024


Com isto nunca quis gravar porra nenhuma,
mas mexer com os materiais da invenção,
batia as letras como quem pega e compara
os tipos, monta cada frase e passa tinta
num ritual para vir esperar algum ritmo
que se impusesse como uma debandada
uma ordem fabulosa erguendo nuvens de pó,
mas cedo dei com os notários os enredos
memoriosos relativos à posse, aos títulos
e percebi como por um receio qualquer
quiseram tornar as lendas imperecíveis
servindo-se da tinta, uns ditando outros
transcrevendo, fazendo cópias truncando
não tanto o sentido como a sonoridade
e às tantas os astros ficaram mudos,
deixando de exercer a sua rigorosa fluência, 
o ritmo sofreu, e o ímpeto, claro, em breve
as imagens achavam-se desencontradas,
os sons vagavam incapazes de se reunir
às coisas, os nomes pareciam cascas,
restava perder-se no silêncio levando só 
um texto para se misturar a ele, sangue
com tinta, reescrevê-lo, rasgar as folhas
meter os bocados na boca e recuperar
enfim tudo sem vontade de estragar nada,
tornar-se analfabeto enfim sabendo-o
de cor, e perder a relação entre os sons
e os signos, mas murmurá-lo para se
adormecer, do mesmo modo como a casa
responde ao vento, e a esse assédio senil,
e se a tempestade aqui é leitura suficiente 
o candeeiro recita de memória 
aquilo que nos foi dito pelos mais velhos,
e eu lembro-me que adorava não perceber 
metade, coser os pedaços que apanhava 
bem vivos no ar, aquelas conversas parecendo
eternizar-se na ânsia de captar algum detalhe 
quanto à natureza do próximo mundo…
Por agora a madrugada ainda assinala
um território sagrado, e nós caminhamos 
encostados à pulsação, atentos a ínfimos 
movimentos no escuro, a corpos
que nos deixaram o ritmo a que respiravam,
respeitando a lua e o seu luto, vagueando 
junto a ela e na companhia dos lobos,
já a mim sempre que a olho dá-me
a impressão de que deve tresandar a álcool, 
acho-a triste, afinal só temos esta ronda
tão larga, mas tão dependente de outro corpo,
e recito-lhe coisas, peço-lhe a opinião,
invento diálogos, apostas, desafios:
basta que chova e já me sirvo disso e juro
bater à porta daquela de quem ainda
vou escrevendo o nome, isto se a lua
e o vento me derem cinco minutos,
um intervalo claro, perfeito
de modo a que se torne indelicado dizer
que não, estando ali eu, de noite e à chuva,
implorando que abra e me convide a entrar.


segunda-feira, setembro 09, 2024


As estações já não aguentam qualquer
efeito de composição, nenhum vaso
contém seja o que for, não se conhece já 
ninguém pelas coisas que diz,
talvez tu que ainda foste uma mulher
quando nenhum de nós presumia saber
o que isso significa, a insolência
a candura, os sinais distribuídos pelos dias
e sobre a pele, trazíamos e levávamos coisas
do museu das nossas memórias
para fazer sentido do que ia sucedendo,
andávamos por ali entre as estátuas
de feições corroídas e das quais podíamos 
colher nos dedos a saliva dos séculos,
tinhas a tua pequena e confiante voz
de quem canta entre o quarto, o chuveiro,
o corredor, essa existência nua,
tinhas o teu poço as rezas oferecidas
as conversas ao telefone a más horas
as acusações dirigidas a deuses de nada,
a tua preocupação em fechar a torneira 
do gás na cozinha, como se imaginasses
que a morte pudesse visitar-te
por um descuido desses, cuidados inúteis 
que te tornam compreensiva, próxima até 
daquela mítica letargia dos rapazes,
também a mim a única moral
que me importa é o tempo, ter bem claro
a todo o momento que já tudo aconteceu
e que só resta escolher o ângulo, como as aves 
que emigram de uma terra para outra,
porque o elemento em que se movem
é o mesmo que respiram, por isso largam
em bando, não ficam para assistir
à desolação, tornam-se um primeiro sinal,
e eu gostava de falar o que elas falam,
uma linguagem que fosse em si mesma
um alimento, um presságio, sons vivos
que com a sua mera propagação 
já nos dizem se o ar se tornou amargo,
ter um nome em si mesmo difícil
como um gole que lhes encha a boca
e os obrigue a cuspi-lo, com um gosto
a maldição ou ao menos a veneno.


segunda-feira, agosto 19, 2024


A memória de um violino chega a ser
o mais importante, a escavação
que foi necessária para lhe arrancar
aquele som, para restituir
cada um dos ossos
a uma composição imaginária.
E se a perfeição é odiosa, não muito
longe, colhe-se um defeito admirável,
aquela sublimidade que buscavam
os exploradores polares transformando-se
em manchas nessas distâncias que ainda 
falam entre si, onde se ouve o eterno
girar do universo e a sua eterna morte
ecoar na frágil carne dos homens,
o mesmo pulso que ouves com as mãos
sobre as gigantescas pedras de cantaria,
a escala dolorosa do que nos cerca,
dos mitos, daquilo que já não parece
feito para nós. Alguns meses sem falar
e regressa o prazer de isolar as palavras,
de sentir o caule destas roçar num frasco,
como a tentação de dar cabo do estilo, 
traduzir apenas esse resto de sol
que fica nos ossos, e a luz dos lugares
onde o mundo não existe, onde te achas
entre corpos que já não se importam,
que abandonaram as histórias
e que o aguentam simplesmente. Vens
a um sítio destes e vês-te prisioneiro 
de um rosto obsessivo, da sua mania
de olhar, da insistência sem uma palavra
a que te agarrares. E nem isto, nada.