Ela muda-se a um canto
sem se importar que eu veja,
e eu vejo
siderado com cada linha,
tão pálida que lhe posso ver os órgãos,
vai demorar uns dois meses ainda
para que conte com as minhas mãos,
e mesmo então
não vamos passar dos lábios,
trocamos bilhetes, frases impossíveis
de serem levadas a um sentido,
e logo assinamos a noite por mais
desfeita que nos surja. Nesta cidade
não há bares onde nos possamos
pendurar nalgum piano, numa voz
que cante velhos refrões, que cante o resto
o chuvisco das vagas, as sombras órfãs
esse outro mundo que a aranha
trafica ao lado da cama em nosso nome.
Fazemos de loucos, dos que têm
a memória aberta, indo por conversas
longas e ferozes como os séculos,
debruçados sob um tabuleiro
com esses escaravelhos negros
que guardam a luz dos astros.
Apontam, tocam sem descanso
música nenhuma,
ali onde tudo foi entornado vive
ainda fresco um reflexo antigo,
esse país a que virámos costas,
esse contorno a giz que quisemos
apagar com os punhos.
Enquanto houver algo de sonoro
em nós, deve valer a pena,
podemos estudar os horários
dos comboios, filmar nuvens, as horas,
raspar o esqueleto do pardal monstruoso
do fundo da gaveta, e com gestos
pouco práticos, sem alcance
respondermos em voz baixa anos depois
às piores coisas que nos disseram.
Em breve os anos e as flores
estarão proibidos. E depois?
Que fizeste da tua fidelidade? Que fiz eu
guiado pelo cheiro de outro corpo?
Andei por estranhos quartos e
a membrana do coração despegou-se. Hoje
tenho pouco, nestas alturas só mesmo
uma palavra: inferno. Mas se vissem
quanto deste mundo fui arrastando
para lá